segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Anita Malfatti - A festa da cor

Audácia e coragem
Foram duas grandes viagens; quase cinco anos vividos longe de casa, em Berlim e Nova York, sem a proteção da família. Ato de muita coragem, pelo fato de Anita ser mulher, muito jovem e só, vivendo nos primórdios do século XX.

Naquele tempo, em que as mulheres mal saíam de casa sozinhas, Anita foi longe, muito longe; coincidentemente, ou movida por um desejo interior, foi para as terras onde estavam fincadas as raízes de sua família. Lugares da origem, da base e da fixação que, como num processo natural e biológico, teriam como etapa seguinte a germinação de novas sementes, que lhe floresciam e frutificavam criação artística.

Anita novamente voltou, deixando Nova York para trás e olhando para a frente, entusiasmada e repleta de desejos de renovação, próprios do vigor de sua juventude.

Na cidade de Santos, que seus olhos ia tomando contornos mais nítidos à medida que o navio se aproximava do porto, esperavam-na sua mãe e seus irmãos Georgina, Alexandre e Guilherme. A família novamente reunida e feliz foi recebida pelos Carrijo, amigos residentes na cidade, enquanto Anita aguardava a liberação de sua bagagem pela alfândega portuária.

A expectativa daqueles que a esperavam também a preocupava. Saudosos, mas certamente firmes em suas posições de analisadores dos resultados de suas pesquisas, estavam todos ali, prontos para se certificar de que Babynha finalmente teria conseguido atingir o apuro técnico. Segundo a concepção de seus parentes, a técnica aguçada, junto com pinceladas firmes e delicadas e cores mais suavizadas, seriam necessárias para que ela atingisse o melhor resultado de sua pintura, bela e realisticamente. Esse era o ideal do academismo artístico e literário que predominava no ambiente provinciano paulista, onde viviam seus familiares e onde se formara a mentalidade e o gosto estético deles.

Artistas aceitos e reconhecidos naqueles anos, Oscar Pereira da Silva, especialista em temas históricos emitológicos; Pedro Alexandrino, mestre do gênero de natureza-morta; Vitor Meireles e Pedro Américo, já falecidos nesse início de século, produziram suas obras rigorosamente dentro dos padrões de representação do tema abordado. Enquanto isso, na Europa, ventos novos começavam a soprar no mundo das artes e da literatura. No Brasil, artistas, intelectuais, imprensa e sociedade em geral estavam alheios ao movimento revolucionário que acontecia no Velho Mundo.

Vivendo nesse meio social acanhado, com o cenário artístico estagnado, Anita, com as obras produzidas em Nova York ainda encaixotadas, temia novamente a reação daqueles que a esperavam.

Quando os parentes mais próximos viram seus trabalhos, tiveram desta vez, além de estranheza, uma reação de desapontamento e tristeza. Afinal, era sua segunda viagem e segunda tentativa de alcançar a qualidade artística esperada. George Krug, o tio que financiou as duas jornadas, ficou muito aborrecido e reagiu com violência, dizendo que aquelas não eram pinturas, mas deformações. Que eram, na verdade, "coisas dantescas" e que não permitiria a entrada daquelas obras em sua residência. Desanimada, Anita guardou seus quadros.

Eram tempos em que o país passava por dificuldades econômicas, em consequência da Primeira Guerra Mundial. Anita, sem a ajuda financeira do tio, voltou a lecionar e a pintar retratos por encomenda. Viver da venda de quadros era impossível, uma vez que não havia mercado de arte em São Paulo.

Influenciado pelo clima de guerra, começou a surgir nos meios artísticos e culturais brasileiros um movimento aglutinador impulsionado por um sentimento nacionalista, que propunha o fim da submissão cultural, substituindo os temas importados por temas nacionais. Dentro da proposta de valorização do homem brasileiro e da paisagem nacional, redescobriram-se artistas como Almeida Junior, pintor nascido no século XIX e muito conhecido no início do século XX. Ele retratou principalmente o ambiente típico interiorano e o homem caipira. Mas, embora inovando na temática, muitos dos pintores nessa fase usavam em seus trabalhos as mesmas técnicas determinadas pelas normas acadêmicas.

Anita também se interessou pelos assuntos nacionais, tratando do tema em sua pintura. Retratou em seus quadros a vegetação, a etnia e os costumes brasileiros. É dessa fase o quadro Tropical , em que a temática brasileira se expressa em linguagem expressionista. A obra ilustra a verdadeira vocação e demonstra os primeiros sinais de pioneirismo.

Tropical foi feito com reaproveitamento de uma tela iniciada ainda em Nova York. Nela se percebe a presença de um nu sob a figura de uma mulata que segura uma cesta de grutas tropicais. Ao fundo, uma vegetação bem brasileira, porém tratada de maneira totalmente nova. Foi a primeira vez que um tema nacional foi abordado na arte moderna no Brasil.

Sem estímulo ou recursos para montar uma mostra individual com os trabalhos realizados em Nova York, mas trazendo dentro de si o sentimento e a necessidade de ser aceita como artista em seu país, Anita resolveu participar da exposição intitulada O Saci, idealizada e organizada pelo conceituado escritor e jornalista José Bento Monteiro Lobato. Nacionalista contundente e crítico feroz da europeização e do desenraizamento da cultura brasileira, premiaria os melhores trabalhos essencialmente nacionais.

Anita não foi premiada por sua versão de saci, que não era tão realista e tradicional como a do vencedor, p pintor Cipicchia. Mesmo assim, foi notada pela imprensa e pela crítica, causou polêmica e admiração, e começou a ser reconhecida no círculo cultural. Di Cavalcanti, então caricaturista de um jornal da cidade, conheceu Anita nessa exposição e tornou-se admirador de seu trabalho. Curioso para conhecer mais de sua obra, convidou outros jornalistas, entre eles Arnaldo Simões Pinto, para que fossem com ele visitar a casa da pintora.

Impressionados com o que viram - as obras de Berlim e de Nova York -, sugeriram à artista que fizesse uma exposição, conseguindo convencê-la apenas depois de muita insistência e de várias visitas a sua casa. A indecisão de Anita devia-se ao receio de expor suas obras depois das reações negativas daqueles que primeiro tinham visto seu trabalho. Apesar disso, readquiriu a coragem que sempre lhe foi peculiar e resolveu fazer sua segunda mostra individual.

Na tarde de 12 de dezembro de 1917, foi inaugurada, no número 111 da rua Líbero, Badaró, em cima do Café Paraventi, num salão cedido pelo conde de Lara, a mostra intitulada Exposição de Pintura Moderna de Anita Malfatti, composta de 53 obras denominadas figuras, paisagens, aquarelas, caricaturas e desenhos. Esperançosa de que sua arte fosse reconhecida, Anita selecionou para expor diante da crítica e do público as obras que produzira durante os muitos anos de estudo de várias tendências artísticas.

Imagens distorcidas de colorido intenso e emocional foram expostas ao lado de obras da fase nacionalista, feitas quando Anita havia recém-chegado ao Brasil. Expôs também telas que trouxera de Nova York, feitas por alguns de seus colegas da Independent School of Art, na tentativa de ilustrar melhor para o público brasileiro que a arte moderna, desconhecida por eles, já era praticada e divulgada havia algum tempo em outros meios culturais.

Aberta ao público, a exposição logo atraiu um número significante de pessoas, levadas, em grande parte, pela curiosidade gerada pela divulgação feita por crônicas jornalísticas. Familiares e amigos da pintora, imprensa, políticos, intelectuais, artistas jovens e artistas já consagrados, ao lado de membros respeitados da alta sociedade paulistana, lotaram por vários dias o recinto da exposição. Passaram pelo evento e assinaram o livro de presença personalidades como Altino Arantes, presidente do Estado de São Paulo, Elói Chaves, secretário da Justiça, o futuro presidente J.M. Rodrigues Alves, os arquitetos Georg Przyrembel e Antonio Garcia Moya, o senador José de Freitas Vale e Nestor Rangel Pestana, diretor do jornal O Estado de São Paulo.

Nestor Pestana, muito amigo dos tios de Anita, havia-lhe feito boas críticas em sua primeira mostra de 1914, reconhecendo na artista, naquela época, um talento promissor. Desta vez, entretanto, mostrou-se desgostoso com o que viu. Entre os artistas, compareceram Wasth Rodrigues, representante de uma arte mais avançada no seu meio; e o professor George Fisher Elpons, principal importador do impressionismo para o Brasil. A jovem estudante de arte Tarsila do Amaral também compareceu, acompanhada de seu mestre de pintura acadêmica Pedro Alexandrino. Nenhum dos dois admirou os quadros modernistas da artista. Tarsila, chocada, estranhou e não compreendeu os trabalhos de Anita. Pedro Alexandrino declarou a sua aluna que achara tudo horrível.

Durante esses dias, um menino com pouco mais de doze anos de idade teve curiosidade de ver a exposição. Era Paulo Mendes Almeida, o futuro escritor que, anos mais tarde, pública o livro de Anita ao Museu, obra muito importante para a história da arte brasileira.

Na primeira semana as coisas transcorreram bem. As reações de espanto e surpresa eram naturais naqueles que deparavam com o novo, mas não prejudicavam o sucesso do evento. Quanto maior o espanto, maior a curiosidade; a quantidade crescente de comentários atraia cada vez mais espectadores. A crônica jornalística, complacente e compreensiva, destacava a exposição como 'original e bizarra', desde a disposição dos quadros até os motivos escolhidos e as técnicas utilizadas pela artista. Os artigos esclareciam que a pintora praticava uma arte adiantada e distante dos métodos clássicos, mas comum em países mais desenvolvidos, que esse tipo de arte poderia chocar inicialmente, mas que a originalidade, a qualidade técnica e o talento de sua autora seriam depois reconhecidos.

Muito comentada pela imprensa, fato incomum na época, a exposição começou a atrair principalmente jovens escritores e artistas. Num clima de novidade e agitação, compareceram o porta Guilherme de Almeida e o então jornalista Oswald de Andrade, que foi apresentado a Anita por Di Cavalcanti. Na primeira semana, também o poeta iniciante Mário de Andrade, desconhecido no meio intelectual e jornalístico, visitou por várias vezes a exposição. Muitos jovens da geração de Anita, que estiveram presentes nesse acontecimento artístico e inovador, formaram com ela mais tarde o grupo idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922.

No dia 20 de dezembro, poucos dias depois de aberta a exposição, Monteiro Lobato, implacável com tudo que fosse importado de culturas estrangeiras, fez críticas negativas ao trabalho de Anita. Ele publicou no jornal O Estado de São Paulo, na edição da noite chamada O Estadinho, na seção 'Artes e Artistas', a matéria intitulada "A respeito da exposição de Anita Malfatti":

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequëncia disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. [...] A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva.
[...] Embora eles se dêem novos , precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com  a paranóia e com a mistificação. De há muito já a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transformados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas [...] não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura.

A crítica mordaz de Monteiro Lobato atingiu violentamente as obras de Anita quando chamou 'a tal arte moderna' de um mal que atingia a arte no Brasil; e desancou a artista que se sentiu atingida pessoalmente, quando classificou a arte em 'normal' e 'anormal', legando a Anita o papel de agente da anormalidade apresentada naquela exposição e intitulada de modernismo.

Avesso às inovações artísticas, Lobato tinha seu repertório teórico e crítico fundamentado em conhecimentos clássicos e academicistas. 'Paranóia ou mistificação?', indagou Lobato, num diagnóstico hostil e demolidor, de quem depara com algo que não entende e não o emociona, que ele encara como um grande mal que o agride e que precisa exterminar - extermínio este que insinua numa crítica elaborada a seis mãos: por George Krug, Nestor Pestana e pelo próprio Monteiro Lobato, que a escreveu aparentemente sem ter que sequer ido a exposição.

George Krug e Nestor Pestana, frustados com o que viram na exposição em virtude de seu extremo conservadorismo, confiaram ao articulista Monteiro Lobato a crítica que pretendia corrigir a inexperiente pintora. Influente e poderoso representante da mentalidade tradicionalista vigente, Lobato provocou, com seus ataques resultados desastrosos à exposição e à vida de Anita. Os jornais, que antes se mantiveram neutros em suas manifestações, passaram a atacá-la. Nos dias que se seguiram à publicação do artigo, a lista de visitantes à exposição encolheu, e cinco dos oito quadros vendidos foram devolvidos. Houve até mesmo manifestações mais violentas, como a de um senhor que, num ato desmedido, tentou destruir um quadro a golpes de bengala, sob o riso de muitos. Outros ainda deixaram bilhetes com insultos anexados nos quadros.

Em razão do prestígio de Lobato, muitos passaram a criticar Anita. Indefesa, acuada e silenciosa, a jovem pintora viu o seu talento e a qualidade de suas obras serem questionados até mesmo por quem não tinha nenhum conhecimento ou fundamentação artística. A repercussão das críticas foi além da exposição, atingindo pessoalmente Anita, que, magoada e traumatizada, retirou-se por muito tempo do meio artístico. Sua euforia e entusiasmo aquietaram-se.

Anita, que não pretendia desestruturar as normas artísticas vigentes e não contava com tanta repercussão e polêmica, surpreendeu-se com o escândalo em que a exposição se transformou. Sentiu-se tratada com aquela que afrontava, mesmo sem querer, os preconceitos intelectuais e sociais da época. Sua decepção e sua mágoa provocaram a retidão e o silêncio da artista. Essa foi, na verdade, a pior das consequências dos ataques de Monteiro Lobato. Abalada na confiança em si mesma e desconfortável perante amigos e familiares, Anita isolou-se, o que prejudicou naquele momento sua evolução artística.

O escândalo, a decepção e o isolamento fizeram com que a artista, aos 28 anos de idade, passasse por um martírio pessoal e artístico. Mas, indiretamente, Lobato consagrou a quem pretendia combater; colocou a pintora em evidência, despertou em alguns o desejo de uma arte renovada e reuniu em torno dela jovens artistas e literários que futuramente idealizariam a Semana de Arte Moderna de 1922. Esses jovens artistas e literatos que futuramente idealizariam a Semana de Arte Moderna de 1922. Esses jovens artistas permaneceram ao lado de Anita durante os difíceis dias que se seguiram à exposição. Entre eles, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Agenor Barbosa, Ribeiro Couto, George Przyrembel, Cândido Mota Filho, João Fernando de ALmeida Prado e Oswald de Andrade, o único a defendê-la por escrito num artigo publicado em 11 de janeiro de 1918, no Jornal do Comércio, um dia depois de encerrada a exposição:

Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a apaixonada eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a vibrante artista não temeu levantar com os seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.

Anita Malfatti ousou, com sua exposição pioneira de 1917, contrariar os padrões estéticos dominantes, criando um marco inicial para aquele que seria o mais importante movimento da arte brasileira, o modernismo, introduzido no país por uma revolução, e não por transição como na Europa e nos Estados Unidos.

Audácia e coragem são as duas palavras que representam não apenas aqueles momentos, mas toda a vida de Anita Malfatti.

Anita Malfatti
A festa da cor (pgs. 47 até 57)
Ani Perri Camargo
Ed. Terceiro Nome